Por fim me decidi por preparar algo para comer. Iniciei o dejejum sentindo uma estranha sensação de ausência e uma ansiedade crescente que perduraria pelo resto do dia. Subi ao quarto e, após conflituosos minutos de embate interior, me virei para ela e quase cedi a seu apelo mudo. Ela me olhava fria e impassível, todavia promessas brotavam de suas faculdades físicas; apelos ávidos misturados a uma indiferença quase que cerimonial.
Virei-me para a cama e, ao lado, uma pilha de livros jazia amontoada – livros que eu comprara e prometera ler: Dickens, ainda pela metade, Kipling que eu nem sequer tirara do plástico filme, Victor Hugo comprado em um sebo e Charles Kingsley com o seu The Water-Babies, que iria exigir do meu inglês contemporâneo e de minha visão presbiópica um esforço suicida.
Sentei-me e enfrentei novamente a silhueta dela, delineada contra a luz do dia. Sabia que já desperdiçara tempo demais nestes últimos meses tentando conviver com sua presença sedutora; seus joguinhos fúteis sempre acabavam por dobrar minha vontade e, depois de ceder, só me restava a frustração.
Fora difícil me desligar de sua entorpecedora influência, que mais lembrava uma dependência química. Hoje compreendo como os privados de opiáceos se sentem ao ficar sem o uso da droga, pois no início, a vontade de correr para ela e me deixar levar pelos seus sussurros e imagens era quase incontrolável. Por vezes me vi aos seus pés, de joelhos, mãos suarentas, um nó a subir e descer na garganta, como um êmbolo movido a ansiedade, tentando formular palavras que justificassem minha desistência, mas eu resisti e a mantive desconectada de minha vida. Deitei na cama e abri Dickens.
Hoje faz trinta dias que não ligo mais a televisão.